Alguns livros, mesmo os não tão bons, têm partes que, por motivos diversos,

nos tocam mais profundamente. Esse blog é para colocar essa parte à parte.

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sábado, 24 de setembro de 2011

Fala humana

"Os animais não falam, entretanto, isso não os impede de se comunicarem com maior ou menor desenvoltura graças a uma linguagem sempre consciente. Vale a pena lembrar aqui os estudos do etologista, prêmio Nobel de Fisiologia em 1976, Karl Von Frisch, sobre a maneira das abelhas se comunicarem entre si [...]. A abelha que identificou a floreira com néctar retorna à colmeia e realiza uma dança composta de rodeios verticais e horizontais para informar a direção e o sentido, a respeito da luz solar, nos quais as outras devem voar. Porém, a engenhosidade da linguagem das abelhas só serve para veicular essa informação e, mais ainda, só por aquela abelha que tenha de fato localizado o néctar. As abelhas só veiculam informações que elas mesmas obtiveram na viagem de reconhecimento. Em suma: elas não fofocam. Que assim seja isso nada diz da retidão moral do ser abelhístico, mas apenas que a linguagem rodada uma e outra vez na dança não permite dizer meias verdades, ou seja, ela é consistente, cerrada.
[...]
O médico e psicanalista Julio Moreno [...] tece considerações interessantes sobre o que ele chama humano do humano. Aquilo que nos caracteriza como humanos seria a capacidade de introduzirmos mudanças na forma de vida. Essa variação estaria motivada pelo fato de sermos capazes - também os únicos - de tomar contato com a 'inconsistência evolutiva'. [...] No entanto, 40 mil anos atrás sobreveio um acontecimento do qual não se podem predicar as suas condições de emergência. Os hominídeos Homo Sapiens, já existentes e vizinhos dos outros [Homo Erectus e o Neandertal] há 160.000 anos, experimentaram um 'grande salto' ou 'explosão criativa' não acompanhado por nenhuma mudança genômica. A partir desse momento, o Homo Sapiens seguiu um caminho bifurcado, passando a ser o único capaz de repetir uma informação com exatidão, bem como o único a padecer em termos aristotélicos de 'repugnância lógica'.
Nosso autor não diz que 'o grande salto' na dita evolução da humanidade, formulado pelo biogeógrafo norte-americano Jared Diamond, seja o da emergência mesma do campo da palavra e da linguagem ou, se preferimos, da função significante. No entanto, é precisamente este quem faz do homem o único ser incapaz de duplicar sem diferença o conteúdo informal de uma mensagem. Por sinal, é isso mesmo que as crianças tanto celebram com risos quando sentadas numa roda brincam de 'telefone sem fio'."
Lajonquière, Leandro de. Figuras do infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Editora Vozes: Rio de Janeiro, 2010. p. 86-87.

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